Algo que também acontecia muito nessa época eram as fortes dores de dente provocadas pelo excesso de balas, pirulitos, suspiros, marias-moles, paçocas, chicletes e outras guloseimas que os meninos adquiriam com os serviços prestados na fazenda. Eram fregueses assíduos do Loro, de Seu Raimundo Batista, da Dona Vá e Dona Elvira. Borba também furava as latas de leite condensado que eram vendidas no bar de sua mãe, o - “Nossa Senhora Aparecida” e tomava num gole só. Borba, Bozo, Bororo e os demais companheiros investiam suas economias nessas açucaradas delícias e o prazer tornava-se mais tarde em cáries que se alastravam pela boca. Foi exatamente nesse período que Borba passou a ter novas ideias.
Na cidade havia um homem muito temido pelos meninos: Nicanor, um dentista gordo que carregava uma enorme mala com seus apetrechos odontológicos – um boticão e uma seringa para anestesia. O povo comentava que ele só trabalhava “melado”, se estivesse sóbrio, esquecia-se de como exercer a profissão. Quando se aproximava do paciente, que a essa altura já estava anestesiado de medo e orando sem cessar, sacava de seu alicate e pedalava a engenhoca que usava para realizar as precárias restaurações. Mas na maioria das vezes o procedimento aconselhado pelo doutor e com o aval da família era esse:
- Arranca essa bexiga!
Por isso, era comum que os meninos, em plena flor da juventude, já dispunham de aparatos que na época denominava-se de “perereca”. Nicanor, “o terrível”, deixava o suor escorrer pela face larga e cair sobre o pobre paciente que muitas vezes saía com os lábios tostados pelo fogo que aquecia as ferramentas de trabalho do zeloso profissional.
Ninguém tinha coragem suficiente de encarar o velho Nicanor, nem o bravo Bororo. Todos corriam dele, como o diabo foge da cruz de Cristo. Quando o avistavam, pediam-lhe até a benção. Por isso, quando as dores de dente começavam a incomodar, valia recorrer a tudo: simpatia, nacos de fumo para amortecer a gengiva, goles de água ardente que ficavam pressionados na boca para amortizar o sofrimento, qualquer coisa, menos ir ao Nicanor. Com o Borba não era diferente, também se valia de todos os recursos, a fim de que seu pai, o velho Suassuna, não o mandasse para a cadeira do famigerado dentista.
Numa determinada noite, depois de haver esgotado todas as possibilidades de fugir daquele encontro fatídico, Borba criou uma técnica aprimorada: cerrou os lábios com uma força descomunal, vedando a pressão, deixando que o ar entrasse apenas pelo orifício ao lado da boca, enquanto realizava uma sucção violenta, que o jogou ao chão, desmaiando-o por alguns segundos, mas que ao acordar, sentiu a sensação de alívio. Era mais uma invenção. Uma ideia iluminada que se perdeu no tempo por não ter sido patenteada por alguma empresa famosa. Uma inventividade que nem a ciência soube explicar. Um simples garoto, um gênio, uma verdadeira máquina humana de sugar, criava uma forma de romper com as terríveis dores de dente. A partir daquele momento a vida do nosso herói mudou. Ao deitar, depois de ter realizado a sua grande descoberta, sonhou com um mundo repleto de chocolates, sendo um bravo guerreiro, que não tinha mais receios de encarar o abominável Nicanor. Agora ele estava livre. Dormiu como um anjo, dando longos suspiros, admirado com seu próprio potencial criativo.
No dia seguinte, sentindo-se imune, levantou bem cedo, retirando de baixo do colchão seu estojo abarrotado de moedas e correu ao boteco de Dona Elvira. Comprou todas as espécies de guloseimas que encontrou e as escondeu. Deleitava-se de prazer, como se fosse tomar o elixir dos deuses. Passou dias sem sentir nenhuma fisgada que o incomodasse, mas quando a dor voltava, celebrava seu ritual. Ao fazer a sucção, uma dor fina subia até a cabeça e o nocauteava, porém a sensação de alívio era instantânea. Com o tempo, Borba aperfeiçoou a sua técnica e já suportava o baque. Já conseguia manter-se em pé.
Bororo e Bozo ficaram sabendo da nova invenção, mas não obtiam êxito quando tentavam realizar tal feito. O mestre criativo executava com perfeição os movimentos com a boca e os outros meninos ficavam admirados com sua técnica apurada. Enquanto os demais faziam visitas constantes ao consultório de Nicanor, Borba empanturrava-se de doces e esquivava-se dos infortúnios causados pelas cáries. Mas os dias de glória estavam contados. Não duraram muito tempo.
Certo dia, vendendo leite nas regiões vizinhas, a ameaça de dor começou a surgir, mas Borba não se importou, continuou guiando a carroça e iniciando todo o procedimento que ele já sabia como executar com maestria, porém percebeu que todo o esforço fora em vão. Tentou uma vez, duas, três, quatro, cinco vezes, mais uma puxada forte e nada. A dor cortava seus dentes como uma navalha, cada vez mais forte. Borba arriou o cavalo e tentou a estratégia “sucçônica” pela última vez. A pressão foi tão intensa que lhe faltou o fôlego, mas de nada adiantou. Começava o desespero, imaginando-se sob o domínio do truculento Nicanor. Não conseguiu continuar o trajeto e retornou para casa. Foi até o galpão, guardou o animal e teve que apelar para os procedimentos rudimentares: arrancou uma lasca de fumo e ruminou por um bom tempo, mas nada de amenizar o sofrimento. Tomou uma talagada da água ardente “Iracema”, de fabricação própria, feita com muito esmero pelo proprietário João Lacerda Leite, mas sem resultado algum. O jeito foi contar ao pai que não hesitou em mandá-lo para o consultório de Nicanor. Borba ainda argumentou com o velho Suassuna, dizendo ter uma outra solução: seria melhor visitar o Dr. Nêgo, discípulo de Nicanor, que era mais próximo.
Concordaram com a idéia e ele foi ao encontro do outro dentista. Nesse ínterim, mesmo com a mandíbula latejando, Borba teve outra ideia brilhante e a pôs em prática logo que chegou ao local almejado. Ao avistar o consultório, pôs-se a andar em câmera lenta, macio como uma onça e parou em frente à porta:
- Seu Nego, seu Nego! (disse sussurrando, de forma inaudível) e voltou para casa, alegando ao pai que havia chamado inúmeras vezes o doutor, bradando em alta voz, mas ninguém respondera. Como já estava tarde, deixou a consulta para o dia seguinte.
Borba passou a noite em claro. Ao lado da cama: querosene, um litro de “Iracema” vazio e no chão batido, um verdadeiro pretume, encharcado das salivações provocadas pelo fumo. Fez uma oração, pedindo que Deus não o deixasse morrer na cadeira de Nicanor. Dizia ser muito jovem e queria desfrutar mais da vida. De repente, um facho de luz invadiu seus neurônios, trazendo uma nova ideia, uma possibilidade de prorrogar seu encontro com o sádico dentista. Lembrou-se de João Bosco, um primo que estava concluindo seus estudos odontológicos e poderia resolver seu problema e, por ser parente, haveria menos sofrimento. Borba teve o respaldo do pai e imediatamente foi encontrar-se com ele.
Esperou por alguns minutos na sala de recepção e logo foi chamado para ser atendido. Após explicar toda a situação, já repousado na cadeira de dentista, João Bosco pediu para que ele aguardasse um pouco até a chegada de seu auxiliar. De repente chega o ajudante. Era o Tio Bozo, que ultimamente estava tendo as suas primeiras lições. Borba ficou perplexo e atônito. Por alguns instantes preferiu estar diante de Nicanor. Enquanto os dois averiguavam a boca do nosso herói, ele esbugalhava o olho, preocupado. João Bosco deu as primeiras orientações ao ajudante e saiu, deixando-os sozinhos. Como Bozo não tinha a prática necessária para extrair o molar, nem os trejeitos da profissão, arrancou o que estava latejando e de sobra, um outro que estava sadio, mas apenas uma parte dele, quebrando-o pela metade, causando-lhe uma dor insuportável. Borba deu um pinote na cadeira, como se estivesse empinando uma carroça e levantou com as mãos sustentando o queixo. Voltou para casa, às carreiras.
No outro dia, o dente já não doía, havia sido extraído, mas ficou por um bom tempo com a “banda” do outro. Daquele dia em diante, não era apenas Nicanor quem lhe causava assombro, mas também o Tio Bozo.
Borba passou a torcer para que ele fosse realmente jogador de futebol.
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